Saber deixar de gostar
“O saber não ocupa lugar” mas gostar de alguém ocupa muito. Uma verdade que é válida para todos os estados civis: solteiro, casado, viúvo ou divorciado. Todos eles finitos, estáticos. E nem um retrata o estado em que se está quando não se cabe em estado nenhum.
Sugiro dois novos. Não para o cartão de cidadão, só para conversa de ocasião. Quais? Não sei, mas vai ser útil. Apaixonado e De Luto.
Cada um serve para todos, porque o solteiro apaixona-se pelo desconhecido e o casado apaixona-se pelo cônjuge. Várias vezes, se tudo correr bem. O divorciado e o viúvo são solteiros com cadastro. A única diferença é a opção de escolha que um tem e outro não. De qualquer das formas, são apaixonados à espera de um novo desconhecido.
Podem todos ser apaixonados, mas só com muita sorte é que fogem do luto. E aqui não interessa o luto do viúvo, apenas porque é um ritual em que não deixamos de gostar de quem desaparece, só o deixamos de ver com os olhos, nunca com o coração.
É apenas neste tema que o viúvo tem descanso, porque estar de luto em qualquer outro estado é outra história. Como é que se consegue deixar de gostar de quem se vê, de quem contínua a existir? Ah, é uma questão de tempo, mas contar o tempo é vê-lo andar mais devagar. Já quem tem o tempo contado, não o sente passar.
Saber deixar de gostar de alguém é coisa que ainda não sei fazer. E não sei se quero, até porque estar de luto é estar apaixonado por um futuro que não vai acontecer. No fundo, só há um estado de estar: apaixonado, mesmo que a paixão tenha ficado fora de validade.
Estar de luto é esperar por uma nova paixão. Por uma substituição que, enquanto não acontece, se vai dissipando até desaparecer, mas nunca por completo. Tal como nos rótulos alimentares, também aqui a nova paixão pode conter vestígios da antiga. Ou não. O que sei eu? Nada.
Saber deixar de gostar é uma ciência sem ciência nenhuma. É uma questão de tempo que não se encontra em nenhum relógio. Deixar de gostar é um desejo tão grande quanto o que alimentou o que nos leva a gostar. É o reverso da moeda. Ou da medalha? Não sei bem como se escreve, nem o que significa esta expressão.
Escrever uma receita de como deixar de gostar de alguém é simples. Tem apenas um passo: é procurar um novo alguém, mesmo que esse alguém sejamos nós também. Já esta frase ainda não é uma expressão, mas parece e soa bem. É das poucas formas em que se consegue falar de amor-próprio sem descair para masturbação, que também é um amor muito próprio.
Escrever esta crónica é como estar apaixonado. Começa e acaba sem se perceber bem como. A única diferença é que aqui eu consigo parar de escrever. Não de gostar.