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Crónicas no Bar da Praia

Às segundas, nem sempre sobre bares ou praias.

Crónicas no Bar da Praia

Às segundas, nem sempre sobre bares ou praias.

Não consigo mais ficar calado, ainda que escrever se faça em silêncio, sobre quem tanto fala da “zona de conforto”. Ainda para mais quando “zona de conforto” me soa a algo que quero encontrar. Tal como um bom sofá. Se adoro o conforto de estar aqui sentado e deitado, não sinto a necessidade de “sair da minha zona de conforto”. 

Sim, estou a ser literal. Ouvi dizer que é um traço de personalidade portuguesa. É um estereótipo, claro, mas um divertido que serve para falar de um tema que me cansa, mesmo sem me mexer.

A expressão “sair da zona de conforto” já é uma bengala gasta para quem quer mudar de trabalho, ou para o discurso de despedida. Ou para quem quer experimentar algo novo, mas tem medo. Então, inspira-se naqueles discursos fáceis em como é bom “sair da zona de conforto”. Que apenas significa “quero fazer coisas novas”.

Estão a estragar a palavra “conforto”. Conforto é uma manta que aquece as pernas, é um colchão que nos abraça, é um sofá que nos inspira a ser sedentários. Sim, estou a ser literal outra vez. Mas também existe a “comida de conforto”, que é muito mais confortável para a alma que para o estômago.

E se, assim na loucura, trocássemos essa lengalenga por “coragem”? Ou coragem só existe para polícias, bombeiros, médicos e ladrões? Dependendo do que se quer roubar, também é preciso coragem.

A meu ver, quem muda de trabalho, ou até de carreira, para “sair da zona de conforto e sentir o desconforto” está, metaforicamente, a dizer duas coisas. Primeiro, “eu sou muito bom neste trabalho, tão bom que até vou embora para não parecer mal aos fracos que aqui ficam”. ´Segundo, “eu não sou grande coisa, mas se disser isto vai parecer que até era bom e o que importa é deixar uma boa última impressão”. Este segundo é inspirado na política. Para aqueles 6 meses antes das eleições, quando nascem obras por todo o lado para ficar na memória curta dos eleitores.

Mesmo que não seja nenhuma das duas, e que seja só alguém que está cansado de fazer pão e quer experimentar pastéis de nata, será que “quero sentir-me desconfortável” é a melhor opção linguística?

Desconfortável é ter as cuecas entaladas no meio do rabinho, sair de casa com uma camisola que afinal é apertada demais, usar calças sem cinto e poder perdê-las a meio do caminho, ou até levar com cocó de gaivota a meio do dia. Nunca me aconteceu a última, mas garanto que ficaria o mais longe que já estive da minha “zona de conforto”.

“Sair da zona de conforto” é uma espécie de burla para aquilo que muitas pessoas fazem. Vender cursos e palestras sobre as maravilhas que lhes acontecem porque estão sempre à procura do desconfortável. E visto bem as coisas, até as percebo. Se eu dormir 30 dias no chão, qualquer cama me vai parecer maravilhosa.

E sim, talvez esteja a ser muito literal com as palavras. Mas é divertido pensar no que as pessoas dizem de forma literal. Por exemplo, quem diz “caralh*s me f*dam” raramente está a desejar que lhe aconteça isso, naquele momento. E se for, que seja divertido.

Nunca entendi a pressa de sair mais cedo de sítios, excepto na escola e na faculdade. O que explica o porquê de hoje estar onde estou. Andava a fugir de mais conhecimento e inteligência? Talvez. Nunca saberemos. Mas sair mais cedo de concertos ou jogos de futebol? Não faz sentido. Para mim.

O meu primeiro concerto na vida foi no Pavilhão Atlântico, em 2000. Tinha 9 anos e, tal como agora, não sei tocar nada nem cantar, mas o Rui Veloso era mestre nisso. Afinal, ainda há primeiras vezes que são mesmo boas.

No fim do concerto e de um enorme aplauso, o senhor ao meu lado foi embora. Talvez fosse boa ideia ser o primeiro a sair para não apanhar trânsito. De pessoas e de carros. E aplaudir pessoas e andar a pé é um bom multitasking. Mas durante o aplauso, o Rui Veloso voltou e deu mais uma hora de concerto.

Os meus pais adoraram, eu também, mas nunca mais fui o mesmo. E quando o concerto acabou de vez, não conseguia parar de pensar no senhor que perdeu tanto pela pressa de ir embora. Eu não sei se ele era médico ou bombeiro e teve alguma emergência. Calma, em 2000 ainda não havia um telemóvel por mão e eu não me lembro de ter visto algum.

Portanto, ele pagou bilhete, foi ao concerto e só viu metade. Mas será que ele soube que não viu tudo? 24 anos depois ainda há pessoas a fazer o mesmo.Acho um desperdício. Não do dinheiro do bilhete, mas sim da experiência. Não gostam assim tanto do que estão a sentir?

O que será que vão fazer estas pessoas com estes 10 minutos de vida que ganham? Olaria? Se sim, tudo bem, mas se for outra coisa qualquer acho parvo. A pressa de sair mais cedo é querer andar a vida toda a correr com medo de perder tempo. E no tempo que ganham, é vida que perdem.

É como ir a um restaurante, comer as entradas, beber um copo, comer meio prato e ir embora. Mas não por não gostarem da comida ou por falta de fome, é mais um estilo de vida. Ou ir ao cinema e sair antes de se revelar o criminoso, ou se o casal fica junto ou não. Serão estas pessoas assim tão bem resolvidas para não quererem saber o final das coisas?

Podia também falar de jogos de futebol, onde qualquer que seja o resultado, há pessoas que vão embora. Não é mau ganhar, nem bom perder, é apenas pressa. E para todos os que saem mais cedo só para fugir à confusão de pessoas e trânsito, fiquem sabendo que eu desejo muito que a reviravolta no jogo, ou um convidado surpresa só apareça nos últimos segundos.

Quem são estas pessoas? Tão apressadas em apressar o fim das coisas? Será que deixam o pão a descongelar mas ainda o comem meio congelado? Cozinham qualquer coisa, mas deixam tudo meio cru porque não há tempo a perder?

A única coisa onde não espero pelo final é a pôr gasolina. Mas não é por não ter tempo a perder, mas sim falta de dinheiro para o encher. Dinheiro que gastei nos concertos que vi até ao fim, mesmo até chegarem os técnicos para desmontar tudo. Quem sabe, até dou uma mãozinha enquanto espero que o trânsito se vá todo embora.

“Os homens são” é uma frase que, seja qual for a continuação, raramente me define. E quando saio poucas vezes à noite,, vejo homens “em ação” e sinto-me deslocado. Sinto-me o fotógrafo da selva, estou lá só a ver. Mas quando chego a casa, tenho pequenas crises de identidade. Até porque também não percebo nada de carros.

Há muitos estereótipos do que é “ser homem” que eu não faço. De certeza que também tenho muitos desses “defeitos comuns”. Aliás, eu tenho imensos defeitos unissexo, mas hoje não vou escrever sobre isso. A verdade é que, nos estereótipos que mais ouço, sinto-me sempre pouco homem.

Nunca deixo a toalha molhada na cama. É o exemplo que me lembro porque aconteceu hoje, mas é tão raro como o Sporting ser campeão. E eu até sou leão. De clube, e peixes de signo. Continuando. Não me lembro de mais nenhum estereótipo.

Sinto que este texto seria muito mais interessante se eu tivesse feito uma pesquisa, tirando notas dos vários convívios onde os ouço. Como não me apetece ir chatear pessoas com isto, perguntei à inteligência artificial por estereótipos de homens em relações, e que partilham casa, e do que é ser homem.

Se a minha escolha foi pouco inteligente, as respostas também não foram grande coisa. A tentativa desesperada de ser politicamente correto fez com que muitas delas me parecessem deselegantes e machistas. Ainda assim, aproveitei algumas para imaginar o que me falta para ser um bom grunho.

“Os homens são emocionalmente distantes” e eu acho que tenho emoções a mais. “Os homens têm mais tendência a serem infiéis e agressivos” e eu nunca traí, nem andei à porrada. Nem dei, nem levei, como acho que acontece nas poucas lutas que já vi começarem. Ao longe.

Devo ter faltado a algum workshop sobre ser homem e agora sinto-me excluído. Sei que é cedo para ter uma crise de meia-idade, mas estou a viver uma de identidade. Como posso ambicionar ser macho alfa quando me faltam tantas qualidades. Não sou bom com bricolage, nem sequer sei um bom piropo.

“Os homens deixam sempre o tampo da sanita para cima” e eu sou exatamente o oposto. Até me aborrece receber amigos que o fazem. “Os homens são pouco românticos” e eu vivo como se fosse uma comédia romântica ambulante. “Os homens tentam sempre arranjar tudo em casa, esteja ou não estragado” e eu até para montar uma mesa chamo ajuda e pago com pizza. Mas só porque gosto da companhia. E de pizza.

“Os homens não ouvem e são egocêntricos”. Merda. Esta crónica é toda sobre mim.

Ver chover é emocionante. É muito mais que ciência, evaporação, condensação e outros termos técnicos sobre o ciclo da água. Ver chover é ter pluviosidade descontrolada de pensamentos mais ou menos nostálgicos. Nem sempre bons, nem sempre maus. Meio irrelevantes como qualquer gota de chuva que não chega a lado nenhum.

A partir de casa, no luxo de poder não sair, chuva é conforto. É procurar mantas para ficar no sofá, a ver um filme ou a trabalhar, porque a chuva também aparece em dias úteis. É procurar o calor de chás, banhos e aquecedores para afugentar a tristeza natural de um dia cinzento.

A beleza de ter gotas penduradas em cada janela é uma ode à melancolia de emoções sem prazo de validade. Mesmo quando algumas até podem cheirar mal. Mas nada que o cheiro de terra molhada não faça esquecer. Dias de chuva aborrecem quem tem roupa para secar, mas esta crónica não é sobre a linda fada do lar que sou.

A chuva também convida à preguiça e à beleza de não fazer nada. Até um qualquer desejo pode chegar à nossa porta, sem tirarmos o robe. Alguém que se sacrifica por caprichos de uma vida citadina também é um herói. Daqueles sem capa. 

A chuva tem muita dormência para oferecer, ao corpo e à mente. E não é só dentro de casa. Ver chover é relaxante e terapêutico, apanhar chuva também. Em ambos os casos pode correr mal, depende dos agasalhos.

Andar à chuva, propositadamente, é um potenciador de emoções mais potente que 12 cervejas. Nunca contei o meu limite, até porque o perco a meio, mas a chuva também tem um pouco de droga. E não é preciso cheirar, nem beber.

Andar à chuva depois de um beijo, tal como nos filmes, é uma celebração e uma alegria. É deixar o corpo ficar encharcado de boas emoções. Bem mais divertido que borboletas na barriga. 

Andar à chuva depois de um beijo que não acontece é exatamente o mesmo. É receber a chuva como castigo pela falta de amor que nos faltou. É o mesmo por potenciar emoções, ainda que sejam bem diferentes. Andar à chuva é castigo e celebração, tal como álcool e algumas drogas. Contudo, muito menos eficaz e lento. Mas mais barato. É uma questão de prioridades.

Tudo isto pode ser só uma visão romântica e exagerada da chuva. E é. Escrita por quem não apanhou uma gota de chuva hoje. Até porque não tinha qualquer emoção comigo. Saí à rua de depósito vazio. E foi assim que voltei.

A chuva é música nos meus ouvidos, inspiração nos meus dedos, mas só quando sou eu a escolher. A chuva também é chata quando não estamos preparados para a receber.  Tal como beber um copo de água, que afinal tem medronho. Parece igual, mas bate diferente.

Pisar uma poça de água maior que o pé e chapinhar sem querer o dia todo é desagradável. Levar com um jato de água nas calças à velocidade de um carro a passar também. E levar com uma gota que se tenta suicidar em queda livre e acaba no nosso cocuruto? Também. Chuva é bom. É mau. É assim-assim. É amor. É a inspiração que me deixou escrever cocuruto num texto. E só por isso, já me sinto todo molhado.

E, se tudo correr bem, também não vai ser uma dor de dentes. É o meu maior desejo. Apesar de ter ficado acordado a noite toda na véspera da véspera de ano novo com uma. Ano novo, vida nova, mas a dor continua cá.

Não sou de insónias. Aliás, durmo como um bebé. Também me alimento como um, às vezes, mas isso fica para uma próxima insónia. É que uma noite inteira a lidar com a dor de dentes é tempo a mais para pensar. E tenho várias conclusões.

Primeiro, a expressão “isso é uma dor de cabeça” podia ser atualizada. Parece uma coisa leve quando se vive uma dor de dentes. Até porque uma dor de dentes faz doer a cabeça, e dores de cabeça não fazem doer os dentes. É como pedir uma dose de caracóis. Apanhar muitos de casca vazia é uma dor de cabeça, comer um e ficar com gastrenterite é uma dor de dentes. Apesar de, neste caso, a dor ser mais a sul.

Não sou muito ateu, nem muito católico. Talvez uma insónia me esclarecesse, mas quando a dor de dentes aparece, até tento falar um bocadinho com deus. Não sei com qual. Queria tanto uns minutos de alívio que aceitava as regras e preces de qualquer um.

Se calhar, a fada dos dentes é o meu verdadeiro Deus. Se me proteger de dia e de noite, como um anjo da guarda, que mais posso eu querer? Nem preciso daquela parte de receber dinheiro debaixo da almofada. Prefiro ter o mealheiro na sala.

E a fada dos dentes também só dá dinheiro quando lhe damos dentes, não é? É que também pensei nisso. Em certos momentos de dor orgásmica, não de prazer mas sim por ser tanta dor que também me revirava os olhos, pensei se não seria melhor arrancar todos e pôr implantes. 

Só assim é que podia valer a pena deixá-los todos debaixo da almofada. Mas só porque os implantes são caros. Ouvi dizer.

Entretanto, a noite continua. A dor também e com ela pensei em palavras que só se utilizam para coisas destas. “Latejante” e “lancinante”. Nunca tinha pensado nelas. Talvez seja a primeira vez que as escrevo. Mas sobre isto não consegui pensar muito mais porque o cocktail gelado de Ben-U-Ron e Brufen fez efeito e eu adormeci.

Isto é o tipo de coisa que dá sentido a expressões como “só quem passa por elas é que sabe” ou “isto nem se deseja aos piores inimigos”. Na verdade, eu também não desejo isto a ninguém, mas é uma excelente experiência de vida para enriquecer o meu historial clínico, que é mais interessante que alguns best-sellers portugueses.

A minha primeira dor de dentes foi durante o confinamento. Naquele primeiro onde até os dentistas foram para dentro. A segunda está a ser agora, neste fim de semana grande onde até o Colombo está fechado. Posso chegar atrasado a todo o lado, mas para isto tenho um timing impecável.