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Crónicas no Bar da Praia

Às segundas, nem sempre sobre bares ou praias.

Crónicas no Bar da Praia

Às segundas, nem sempre sobre bares ou praias.

Conheci-a como se fosse um filme de sábado à tarde, daqueles levemente emocionantes quando se conhece a história toda. Mas com ela ainda não tinha história nenhuma. Só a esperança de um final feliz, seja o que for que isso quer dizer.

Foi num qualquer escritório que a vi pela primeira vez, daqueles onde o espaço é amplo, mas as mentes ainda vivem em cubículos.

Ela chegou e foi brilho num sítio escuro, era cor numa tela em branco. E eu, armado em pirilampo, só conseguia brilhar às vezes. Nunca fomos colegas de carteira, mas partilhávamos o corredor que ela fazia todos os dias. E eu, no meio do caminho, quase me tornei pontual só para a ver chegar.

Foi lá que nos fomos cruzando, uma e outra vez, para trocar dois dedos de conversa que me enchiam o corpo todo. Falámos sobre livros, enquanto ela inspirava o meu. Sobre cinema, que ainda não víamos juntos, sobre restaurantes enquanto almoçávamos marmitas. E tudo isto era música para os meus ouvidos. Mesmo quando me esquecia dos headphones.

Agora percebo a definição de “dias úteis”, porque estar com ela nunca foi um desperdício. Fiquei tão encantado que até o fim de semana me parecia má notícia. Mal eu sabia que o fim estava a chegar e a música ia ser outra. Deixei o escritório onde me deixava encantar todos os dias e só a voltei a ver pontualmente.

Já não éramos só dois desconhecidos num escritório cheio de gente. Éramos amigos pirilampos que brilham só quando se juntam: de vez em quando. E de quando em vez, foram cada vez mais as vezes que nos encontrámos. Um café, uma imperial, uma mesa para dois. A música voltou a tocar como se nunca tivesse parado.

Parecia ser o que nunca foi: uma história de amor à espera de acontecer. Fomos ao café e ao cinema. Andámos às voltas pela cidade, mas nunca encontrei o caminho certo. Perdi-me nos livros, músicas e olhares.

Cantámos juntos o que nunca lhe consegui contar. Foi tanto encanto quanto o tempo que eu demorei até acreditar que estava encantado.

Ela é estupidamente bonita, nos meus olhos e nas poucas fotos que vi. Estupidamente, porque me sinto estúpido pelos beijos que não dei e por demorar a perceber que me apaixonei. Por ela, por nós, e pelo guião que queria escrever. Apaixonei-me demasiado cedo, descobri demasiado tarde, e é por isso que este filme nunca chegou às salas de cinema.

Isto podia ser uma história de amor, mas nem uma história é. Faltam palavras para falar de um amor que não é platónico, nem real, é uma ideia presa num coração vazia que sonha um dia estar cheio.

Hoje em dia é difícil fazer algo que não nos obrigue imediatamente a uma avaliação. Tudo começa na escola, faculdade e trabalho em que nos avaliam a nós. Entretanto, começamos nós a avaliar tudo o que mexe: seja um restaurante ou um aspirador de saco. Avalia-se tudo e mais alguma coisa, mas sinto falta de uma avaliação.

Aliás, é muito provável que, antes de fazermos ou comprarmos algo, sejamos nós a procurar as avaliações de pessoas que já o fizeram. E confiamos quase cegamente nelas. Mas nos encontros amorosos, com perspectivas românticas ou sexuais, ou ambas, não há inquérito de satisfação e faz falta. Mas só para o primeiro café a dois.

Neste caso, ver as avaliações de quem já experimentou, ou melhor, conheceu, não é tão relevante. Há menos interesse em saber a quantidade, mas continuamos a aceitar, de boa vontade, recomendações de amigos em quem confiamos a vida. Tal como acreditamos quando queremos comprar uma air fryer.

Depois do primeiro encontro, a auto-avaliação é intuitiva. Gostei e quero mais. Não gostei e quero menos. Se calhar até nem quero nada. Há infinitas variáveis de avaliação, mas nem sempre sabemos o que pensa quem também nos avaliou. É uma questão de tempo, eu sei, mas e se fosse imediato?

Há duas perguntas que saltam à vista. Podemos até copiar o que se faz nos restaurantes e na compra de um livro. Ambas com ligeiras adaptações. No restaurante, no final da refeição, surge quase sempre a pergunta “gostou?”. A adaptação seria apenas adicionar uma escala de 0 a 10. Ninguém gosta de perguntas de resposta aberta.

A segunda pergunta, e última para não ser chato, pode ser copiada das que nos fazem em qualquer compra online. “De 0 a 10, recomendaria a um amigo?”. Parece uma pergunta com rasteira, mas é simples. Se não gostámos da companhia, por que raio haveríamos de recomendar a um amigo? E se gostámos, porque é que vamos recomendar a um amigo em vez de sermos nós a repetir a experiência?

A pergunta certa seria “de 0 a 10, repetimos?” Não sei se alguém está preparado para o resultado. Eu para já estou só muito curioso em saber o meu valor aos olhos de outra pessoa. Quero ser avaliado como se fosse um bitoque numa tasca lisboeta. Só não é preciso replicar o Zomato para me deixar triste numa lista cheia de bitoques diferentes de mim. Não me quero comparar a ninguém. 

À primeira vista, parece uma solução meio caótica, mas podemos sempre dizer que é “uma experiência social”, tal como as televisões descrevem os reality shows. Eu acredito que tem potencial. Pode acelerar relações tão rápido como destruir a auto-estima. De qualquer das formas, não é melhor isto do que fazer ghosting? 

Existe uma pressão intrínseca em cada uma das “primeiras vezes” que temos ao longo da vida. Mas muitas delas são pouco marcantes para nós que nos estreamos em algo novo. Especialmente enquanto crianças, a “primeira vez” é uma festa dos pais.

A primeira papa, o primeiro cocó, a primeira ida à rua. Tudo isto é uma primeira vez marcante, mas se tudo correr bem, vamos passar o resto da vida a repetir tudo, todos os dias. As primeiras vezes que nos marcam são, por hábito, as más. Eu sei que comecei a nadar aos 2 anos, mas depois de 22 anos consecutivos na piscina, só se me tivesse afogado é que guardaria esse episódio na memória.

Eu só me lembro do meu segundo primeiro dia de faculdade. Conta como primeira vez, porque era um curso diferente. E a única razão pela qual me lembro é porque fiquei mais de uma hora na sala errada. O que ficou cravado na memória foi a minha falta de atenção com horários, e não tanto com o dia em si.

Tudo o que se torna rotina, deixa de ser lembrado. Não duvido que o primeiro dia de escola seja memorável, seja qual for a escola: creche, jardim de infância, ensino básico ou secundário. O primeiro dia é diferente de tudo o que já vivemos até aí, mas como lá vamos passar, no mínimo, 9 meses, acabamos por deixá-lo cair da memória.

Pensei muito sobre todas as vezes que “perdi a virgindade” de alguma coisa, sendo que, literalmente falando, é a única coisa que não vou escrever aqui. Sei onde e a quem dei o meu primeiro beijo, mas não me lembro do beijo em si. Há duas conclusões a tirar sobre isto: não foi o único beijo nessa pessoa, nem nada trágico aconteceu. Espero eu, pode ter sido uma tragédia tão grande que o meu cérebro preferiu apagar por completo.

Por mais marcante que seja o momento em si, quanto mais se repete, mais se esquece. E os beijos, para mim, são como concertos. E não é porque beijar alguém é música para os meus ouvidos. É porque, felizmente, já vi bastantes, mas não me lembro de todos. Lembro-me dos que mais me tocaram no coração.

Só assim explico o porquê de me lembrar tão bem do meu primeiro concerto. O Rui Veloso dá um ótimo espetáculo, o Pavilhão Atlântico estava cheio, cantei muito, mas a memória que realmente me ficou nada tem a ver com música.

Um senhor sentado perto de mim decidiu ir embora no “fim do concerto”. As aspas são apenas para representar que ele devia ser o único a não conhecer o que é um “encore”, ou então simplesmente não era otimista o suficiente para acreditar que ainda faltavam algumas músicas emblemáticas.

Sim, com o Rui Veloso, há demasiadas músicas que são obrigatórias e não nos podemos queixar se alguma ficar de fora, mas o senhor abandonou o concerto a meio da primeira grande ovação. Depois disso, o Rui Veloso continuou em palco durante mais de 1h e foi incrível. Acredito eu.

Sei quem fui ver, onde e com quem estava. Não me lembro de nada do que aconteceu a não ser do senhor que pagou um bilhete para ver meio espetáculo. Pelo menos no beijo, lembro-me de sentir muito mais que um concerto: foi um festival.

“Correr é parvo”, é uma frase que já me saiu muitas vezes da boca, e dos dedos. É uma frase que defendo sem razão aparente a não ser eu próprio não gostar. Há tanta forma mais engraçada de fazer exercício do que correr atrás do nada com o objetivo de voltar ao ponto onde se começou. Contudo, o meu desporto preferido é nadar. Numa piscina. Coerência nunca foi o meu forte.

Na última vez que me atirei à piscina, tive tempo para afogar as mágoas deste tema enquanto o meu cérebro ainda não estava exclusivamente preocupado em manter-me vivo.

Dizer que gosto de nadar é o que mais depressa me tira o tapete sobre a estupidez de correr. Porque nadar é correr e correr é nadar. É tudo uma questão de paisagem, visto que os azulejos da piscina são sempre os mesmos, desde que eu não troque de sítio. Falta-lhes arte e cor. Até podiam dar um novo alento durante as infinitas piscinas que lá faço durante cada treino.

Infinitas é só uma força de expressão altamente motivadora porque fala sobre a minha capacidade também infinita para manter o ritmo alto e duradouro. Infelizmente, nenhuma das coisas é infinita e teria até vergonha de falar da minha capacidade física neste momento. Correr é que é estúpido, lembram-se?

Antes de mais, eu conheço pessoas que correm, de quem eu gosto muito, não porque correm mas porque são mesmo boas pessoas. Tão boas que nem me prendo nesse facto. Sim, digo alarvidades mas no fundo tenho bom coração. Eu aplaudo todos os que decidem ir correr, pela coragem em procurar o limite do corpo, muitas vezes ao lado de carros em andamento e com uma boa probabilidade de acabarem com os joelhos limados pelo alcatrão.

Seja a casa ou o carro, o ponto de partida de um corredor deve ser também e sempre o ponto de chegada. E se não for é só mau planeamento. A única coisa que me agrada na ideia de correr é a paisagem. Mas para ver paisagem, é melhor estar sentado para apreciar com calma. Eu pergunto-me “mas correr com que objetivo, porquê, atrás de quem, se nem um avião que preciso de apanhar me convence a apressar o passo? 

E na verdade, o que é nadar se não correr dentro de água? Enquanto a correr vamos atrás de um tempo, e de correr uns tantos quilómetros, nadar é fazer o mesmo, mas num curto espaço de 25 metros, tal como um peixinho dourado. A proporção deve ser a mesma.

Nadar é só uma forma de equilibrar o sofrimento que quase todos nós já causámos a um peixe que quisemos ter em casa. Preso dentro de um pequeno aquário que, na melhor das hipóteses, tinha pedras e uma alga para “enganar o peixe a pensar que estava no mar”. O peixe não tinha saída que não fosse nadar às voltas, para trás e para a frente. E quando eu vou nadar, não sou também só um peixe dourado preso num pequeno espaço aquático?

Correr pode não ser parvo, mas eu sou, e a única diferença entre mim e um peixe no aquário, é que a mim ninguém me atira comida. E que bem que me sabia.